O CENÁRIO E O PERSONAGEM
- Plinio de P. S. Benfica.
- 18 de abr. de 2017
- 7 min de leitura

Entrar em recuperação envolve mais do que não usar álcool e drogas. Tanto o adicto quanto o codependente, em algum momento, também precisarão abrir mão de uma grande parte de sua própria identidade. São comuns cenários que se desenrolam com personagens codependentes orbitando em torno de outros cenários com personagens que abusam de substâncias.
Um personagem pode ser definido como a forma que uma pessoa se vê, ou seja, a sua autoimagem diante de determinada situação ou cenário. Já a definição de cenário pode ser descrita como o “palco”, o conjunto de elementos que formam o ambiente mais propício a recuperação. É onde se desenrola a atuação do personagem “doente em recuperação”. Cenários e personagens se constroem através dos anos e da repetição. Construir um personagem, não somente concebe novas formas de ver o mundo, mas também de ver a si próprio (autoimagem). Mesmo após adictos e codependentes resolverem abandonar os comportamentos doentes, ainda assim permanece em cada indivíduo um personagem e os respectivos cenários da antiga doença ativa. Um dos desafios mais difíceis para as pessoas que estão em sobriedade inicial é construir um novo personagem.
Deixar o personagem da doença ativa e construir o personagem da recuperação.
O personagem não é algo que permaneça estático, ele se adapta constantemente ao meio ambiente. Existem muitos tipos diferentes de personagens, incluindo a forma como a pessoa é e com o que ela se identifica culturalmente, classe social, gênero, nacionalidade, profissão ou religião. A maioria das pessoas consegue incorporar uma série de personagens ao longo da vida, e as utilizam de acordo como os cenários mudam ao longo do dia ou da semana ou do ano. Desta forma são capazes de se comportar de uma maneira no trabalho e de outra maneira diferente quando estão relaxando com os amigos. Desta forma o personagem nunca é fixo, e um indivíduo geralmente tem uma autoimagem na vida adulta que é muito diferente da sua autoimagem na adolescência.
Identidade da doença ativa.
As pessoas que estão envolvidas no drama da adicção e da codependência adotam um certo tipo de personagem. Ele é patológico, não é consciente, ou seja, a pessoa não sabe que está atuando através de um personagem e muito menos que ele é doente. Isto faz com que a adicção e a codependencia sejam diferentes de outras doenças. Ambas são doenças do comportamento. A consciência da doença é inaugurada com a recuperação, mesmo assim, sob algumas circunstâncias, quando inserido em alguns cenários da doença, estranhamente o indivíduo, sem se perceber passará a atuar novamente como aquele personagem da doença ativa. Na codependência, a ideia de salvar, manipular, controlar, compulsivamente, pode ser uma característica cultural transmitida de geração para geração. Da mesma forma, a identidade dos adictos e dos codependentes pode envolver diferentes ideias, crenças, motivações e comportamentos, tais como:Ideias crenças e motivações do personagem da adicção ativa:
A ideia de que as pessoas sóbrias são “chatas”.
A prioridade da vida é conseguir usar.
Uma alta tolerância com a própria promiscuidade sexual.
A crença de que o abuso de substâncias torna as pessoas mais interessantes e/ou criativas.
Disposição em usar a desonestidade para alcançar um objetivo.
Desconfiança de profissionais da área de recuperação da adicção.
A crença de que as conquistas devem ser celebradas ficando bêbado ou “chapado”.
A crença de que o abuso de substâncias fornece conforto quando a vida fica difícil.
A crença do “nós contra eles”, criando vínculo com outros adictos da ativa.
A crença de que não seguir as regras e a criminalidade são comportamentos respeitáveis.
Ideias crença e motivações do personagem codependentes
A ideia de que as atitudes das codependentes em recuperação são radicais.
A prioridade da vida é fazer com que o adicto não use.
Uma alta tolerância com a promiscuidade sexual do adicto.
A crença de que salvar os adictos deles mesmos, é um ato de amor e torna a si próprio um bom pai ou boa mãe ou boa esposa (o).
Disposição para usar desonestidade para alcançar um objetivo.
Desconfiança de profissionais da recuperação da codependência.
A crença de que os fracassos devem ser repetidos, usando a mesma formula, só que com mais força.
A crença de que quando uma crise acontece, “salvar o adicto” fornece a sensação de segurança.
A crença de “nós contra eles”, fazendo aliança com o adicto, em desacordo com o resto da família (sempre na esperança de que ele vai retribuir).
A crença de que não seguir as regras e as leis são necessárias quando se trata de salvar o adicto.
Síndrome de Bêbado Seco
Uma razão comum para recaídas após um período de recuperação é que o indivíduo não conseguiu fortalecer seu personagem de doente ativo diante do personagem de doente em recuperação.
Por outro lado, também são inúmeras as pessoas que se agarram ao personagem doente, mas não recaem. Tal indivíduo não estará mais bebendo, usando drogas ou salvando o adicto através de adotar comportamentos codependentes, mas sua vida permanecerá a mesma de muitas outras maneiras. É o tipo de situação na qual a pessoa sente que a vida inicial em recuperação é semelhante a uma sentença de prisão. São pessoas investidas do personagem de doente na ativa inseridas em cenários de recuperação. Esses indivíduos serão incapazes de encontrar a verdadeira felicidade longe da doença até que estabeleçam personagens alinhados com cenários de recuperação.
Programas de 12 Passos e a Identidade do doente
No passado os programas de 12 passos foram criticados por reforçarem negativamente o personagem de adicto e codependentes em recuperação. Isto porque os membros eram e são incentivados a pensar como personagens de doentes em recuperação, e não como personagens não doentes ou curados. Agora a ciência confirma que a adicção é uma doença crônica. E ao que parece a codependência também o é, portanto, sempre haverá a possibilidade de recaídas. A lógica nos diz que as sobriedades, tanto da adicção quanto da codependência, devem ser tratadas da mesma forma que a remissão de qualquer outra doença crônica. O problema aparentemente surgiu com a polarização dos conceitos. Ou é um doente na ativa ou não é doente. O tempo e a realidade mostraram outra coisa. Uma terceira via, talvez os personagens mais importantes e também um dos mais esquecidos dessa história toda que são respectivamente “o adicto em recuperação” e o “codependente em recuperação”. Estes não estão na ativa e tão pouco curados. Construir o personagem de adicto ou de codependente em recuperação é um processo demorado e que sé realizado através da adoção de um novo estilo de vida. Algumas pessoas não querem abrir mão de seu personagem de doente ativo e ao mesmo tempo também não querem mais voltar ao uso de substâncias ou aos comportamentos codependentes. Este impasse parece mais com uma boa receita de sofrimento e fracasso.
O cenário e o personagem.
Ao que parece a grande luta se dá na relação entre cenário e personagem. De fato, cada personagem pede um cenário e vice-versa. Temos o impulso de atuar com personagens que criamos para nos adaptar a determinados cenários. Por exemplo, em cenários de crise o Clark kent retira os óculos, e para salvar o mundo põe sua roupa de super-homem. Da mesma forma codependentes diante da crise, voltam a se utilizar de seus “superpoderes” (controle e facilitação, manipulação). E adictos abstinentes diante de cenários da adicção ativa sentem vontade de usar. Talvez por isso, cenários de recuperação também podem “chamar” personagens de recuperação. Dificilmente cenários de recuperação instigam personagens da doença ativa. O mais interessante é que principalmente os adictos criam cenários para as recaídas de codependentes e estes também são os que mais criam cenários para as recaídas dos adictos.
Como escapar do personagem da adicção e da codependência ativa
O fato é que os personagens não são estáticos. Entretanto, as vezes, o personagem do adicto ou do codependente doentes, podem estar tão arraigados que o indivíduo precisará buscar ativamente escapar deles. E para que isso aconteça:
As pessoas em recuperação precisam evitar seus antigos amigos de palco, ou seja, de cenários da doença ativa.
As pessoas em recuperação precisam decidir o tipo de personagem que gostariam de se tornar. A partir disto, elas poderão tomar medidas que ajudarão a desenvolver essa identidade.
Participar de um grupo de recuperação pode permitir que o indivíduo construa uma nova rede de amigos. Esses amigos podem ajudar o indivíduo a estabelecer um novo personagem que não envolva comportamentos codependentes e no caso dos adictos comportamentos de uso de substâncias.
Fazer uso de recursos como literatura de recuperação e sites de sobriedade pode ajudar as pessoas a mudar suas visões sobre a vida.
Aprender novos mecanismos de enfrentamento mais eficazes. Estes “comportamentos de recuperação” ajudam o indivíduo a interagir de forma diferente e melhor com o mundo.
A honestidade consigo e com os outros é um valor fundamental para as pessoas que estão esperando construir uma nova vida longe de dependência e da codependência.Ajudar os outros a alcançar a recuperação pode ter um forte e positivo impacto sobre a construção do personagem. Entender que a vida em recuperação é principalmente duas coisas, primeiro experimentar coisas novas e segundo submeter-se a princípios. O equilíbrio entre essas duas coisas produzirá a parte mais importante do novo personagem.
Aceitando o personagem de Pessoa Recuperação.
As pessoas que conseguem construir o personagem da recuperação, só o fazem porque aceitam um fato inquestionavel. “Não é possível levar uma vida segura se valendo de comportamentos codependentes ou usando substâncias, é necessário desenvolver uma mudança”. Os críticos de A.A. e N.A. assumiram que o personagem de pessoa em recuperação tem um efeito negativo, depreciativo e aumenta a baixa auto-estima.
Ocorre que, o personagem de pessoa em recuperação não precisa perpetuar um cenario negativo e pobre. Aqueles com uma recuperação sólida têm superado suas vergonhas e culpas, assumindo a responsabilidade por seus comportamentos, e podem atestar a importância da abstinência sem sofrer com uma autocrítica prejdicial. Eles também entendem que devem permanecer conscientes de potenciais riscos de recaída, como por exemplo o aumento do estresse, conflitos, perdas interpessoais, ou situações sociais de alto risco. Seu comportamento reflete as mudanças. Isto significa que não ha problema algum em ser codependente ou ser adicto. o problema é ser codependente ou adicto com a doença ativada.
Então podemos entender que a recuperação é um jogo com quatro jogadores dentro de uma mesma pessoa. Existem quatro personagens diferentes. Primeiro a de pessoa na doença ativa, segundo a pessoa que não é doente, terceiro a que está em recuperação e quarto a pessoa que é doente e está recaida. A par disto, podemos afirmar que:
Quando o personagem do doente ativo luta para atuar como personagem de pessoa não doente o resultado é que ele permanece no personagem da doença ativa. Ou seja, mesmo que ele queira ele não muda. Quando um personagem de doente ativo luta para construir um personagem de doente em recuperação o resultado é que ele muda e entra em recuperação, e isto quer dizer que ocorre uma mudança positiva.Quando um personagem de doente em recuperação tenta construir um personagem de pessoa não doente o resultado é que ele constroi um personagem de doente recaido, e isto significa uma mudança negativa.
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